3 porquês com Tânia Ramos

Tânia Ramos tem um PhD em Cognição Social pelo ISCTE e UCSB e foi investigadora pós doc na New York University. Tem vasta experiência tanto em investigação básica, como em aplicar o conhecimento da psicologia na compreensão de problemas sociais. Actualmente trabalha como UX Researcher na OutSystems. Enquanto Psicóloga amiga do Humanário, respondeu a três grandes “porquês” que vão ao encontro de alguns dos temas que estuda.

Porque é que mentimos?

A mentira é um dos fenómenos psicológicos mais interessantes e mais complexos. Nós mentimos de várias formas e por diversas razões.

Muitas vezes a mentira é vista como um traço de carácter — associado a pessoas que utilizam a mentira como uma ferramenta de manipulação de outrxs, para benefício próprio. Mas há várias formas de mentira. O que os estudos em Psicologia têm mostrado é que a mentira é um fenómeno muito mais comum, mais complexo e muito mais influenciado por fatores contextuais do que se poderia assumir à partida. Há estudos de registo diário, por exemplo, em que as pessoas reportaram mentir pelo menos uma vez a cada cinco interacções sociais.

Há vários fatores que favorecem a mentira. Uma influência muito poderosa é o que as outras pessoas fazem — as designadas normas sociais. Por exemplo, se no nosso contexto de trabalho vemos colegas a passar declarações falsas, aprendemos que esse comportamento é normal naquele contexto e é mais provável que comecemos a adoptar o mesmo comportamento. Quando a mentira passa ilesa e é até compensada positivamente, há uma sinalização de que naquele contexto mentir é aceitável. Este efeito é tanto maior, quanto mais nós nos identificamos com as pessoas que exibem a mentira. Se no nosso contexto familiar ou no nosso grupo de amigos vemos que é normal entregar atestados de saúde falsos, não declarar certos rendimentos nos impostos, ou ser infiel e mentir nas relações amorosas, essas mentiras passam a ser vistas como menos condenáveis. Este tipo de normas são normas sociais implícitas, não estão escritas em lado nenhum, opõem-se muitas vezes a normas explícitas legais, mas têm um poder extremamente forte ao nível da regulação do nosso comportamento no dia-a-dia.

Também podemos mentir para manter a estabilidade e a coesão grupal. Este é, de resto, um dos terrenos mais ameaçadores da verdade. É muito mais difícil nós dizermos a verdade quando sabemos que essa verdade pode ter consequências negativas para os grupos ou instituições às quais pertencemos. Isso acontece porque estes são casos em que o valor da verdade entra em conflito com outro valor importante, que é o valor da lealdade. A pessoa sente-se mal tanto por mentir, como por dizer a verdade e ser desleal ao seu grupo. E em nome da união grupal, as pessoas podem omitir a verdade, manter secretismos, ou apresentar factos de forma parcial — fenómenos próximos da mentira e que podem levar também à criação de ideias erradas nas outras pessoas.

Outra razão pela qual mentimos é porque não queremos magoar os outros. Se uma amiga nos pergunta se gostamos do seu novo corte de cabelo, se alguém nos pergunta se gostamos do jantar que preparou para nós, ou se x nossx parceirx nos pergunta se ainda x amamos, será que o melhor é dizer a verdade, ou não? Podemos mentir porque achamos que a verdade é demasiado dolorosa para a outra pessoa, que não tem capacidade para suportá-la, ou então vai reagir de forma defensiva. A mentira assume aqui um papel de manutenção da harmonia das relações interpessoais. Estas mentiras podem até ser vistas como uma forma de “educação”. De facto, nós podemos achar muita piada quando as crianças são brutalmente honestas e dizem exatamente aquilo que pensam. No entanto, o mesmo nível de frontalidade não é esperado num adulto, e pode ser visto como indelicadeza ou crueldade. É como se o processo de socialização duma criança passasse por ensiná-la que há uma parte da sua verdade que não é suposto ser partilhada de forma livre, e que às vezes mais vale mentir.

Além disso, podemos mentir, não só para evitar magoar x outrx, mas porque acreditamos que a mentira vai fazer bem à outra pessoa. Imaginemos um médico que dá um placebo sem dizer nada ao paciente porque acredita no seu efeito positivo, ou um gestor que apesar de ter uma opinião negativa sobre uma das pessoas com quem trabalha só lhe dá feedback positivo com medo de x desmotivar, ou por exemplo, pais e mães quando contam às crianças a história do pai Natal… Nestes casos, mentimos por aquilo que acreditamos serem boas razões, acreditamos que a mentira é benéfica para a outra pessoa.

No geral, quanto mais fácil é justificar a mentira por fatores externos, mais fácil é mentir. Estes fenómenos foram muito estudados pelo psicólogo Albert Bandura, por exemplo. Se justificamos a mentira porque xs outrxs também mentem, ou porque xs outrxs fazem ainda pior que nós, ou em nome de uma causa superior, a mentira passa a estar justificada e pode nem sequer chegar a ser identificada como uma mentira pelx próprix. Embora a mentira esteja normalmente ligada à imoralidade, nestes casos há uma dissociação entre mentira e imoralidade. O que é curioso é que, enquanto que para a própria pessoa é como se a mentira não tivesse sequer acontecido, para os outros que observam de fora, ela é muitas vezes identificada como uma mentira grave e pode nunca ser esquecida nem perdoada.

Porque é que somos tão suscetíveis a acreditar fake news?

Antes de mais, importa referir que o termo fake news tem sido utilizado para descrever casos em que informação falsa é dissimulada e apresentada na forma de notícia verdadeira. Além disso, quem fabrica a notícia sabe que ela é falsa e tem intenção de manipulação. A questão é perceber quais os mecanismos psicológicos que fazem com que as pessoas se deixem enganar por notícias falsas e que tenham dificuldade em distinguir notícias verdadeiras de notícias falsas.

Isso parece acontecer porque a mentira é muito mais maleável do que a verdade, e pode ser moldada propositadamente para explorar certas características da forma como a nossa mente processa informações. As fake news têm algumas pistas (heurísticas) que são habitualmente usadas pelo nosso sistema mental para fazer julgamentos rápidos de verdade.

Uma dessas pistas é a repetição. A exposição repetida a uma notícia falsa aumenta a probabilidade dela ser considerada verdadeira, provavelmente porque a nossa mente usa a facilidade de processamento como uma indicação de verdade. Outra heurística é a credibilidade da pessoa que divulga a notícia. Quanto mais credível para nós é a pessoa, mais provável é acreditarmos nos conteúdos que ela divulga. Infelizmente, hoje em dia a credibilidade pode também ser ilusória e depender, por exemplo, do número de seguidorxs ou do número de likes, e não de contribuições significativas. Há estudos que mostram que quanto maior o número de likes e de shares de conteúdo não credível, maior a probabilidade das pessoas o partilharem, e menor a probabilidade de procurarem confirmar a sua veracidade.

Por outro lado, uma característica das notícias falsas é a sua carga emocional, que faz com que elas capturem a nossa atenção. Normalmente, as fake news são fabricadas de forma a induzir respostas emocionais extremas por parte das pessoas, como o medo, o choque ou a revolta moral. Isso pode explicar a razão pela qual as notícias falsas se transmitem muito mais rapidamente do que as notícias verdadeiras. Num estudo recente, verificou-se que uma mensagem é 12% mais provável de ser partilhada, por cada palavra emocional adicional.

Repare-se que estas pistas são tanto mais usadas para fazer julgamentos de verdade, quanto maior a sobrecarga cognitiva. Portanto, a crescente proliferação de informação online actua como uma força a favor da utilização destas pistas, e torna muito difícil uma análise mais rigorosa de toda a informação que consumimos.

Porque é que é que parece existir cada vez mais desinformação (e o que podemos fazer em termos práticos para combater essas tendências para além do “informa-te”)?

A desinformação e a disseminação de rumores falsos sempre existiram, não são de todo fenómenos novos na nossa sociedade. A diferença é que, enquanto que antes essa capacidade estava reservada a alguns grupos com determinados poderes, hoje em dia qualquer pessoa o pode fazer, de modo muito fácil e rápido, sobretudo através das redes sociais.

Atualmente, qualquer pessoa pode ter a sua “audiência”, E quanto maior a sua audiência, maior o seu potencial de disseminação de informação e de influência. Isso pode fazer com que algumas pessoas “sigam” outras com o objetivo de serem “seguidas de volta”, e não por estarem particularmente interessadas nos seus conteúdos. E pode também levar à reciprocidade de likes — eu gosto dos teus posts e tu gostas dos meus. A partir do momento que a pessoa tem uma audiência, os “likes” e os “shares” servem como um reforço positivo que incentiva as pessoas a partilhar conteúdos. Portanto, as redes sociais contém mecanismos que promovem a constante geração e partilha de informação. Isso leva a muito conteúdo disponível mas, em média, de menor qualidade.

O que se pode fazer para combater a disseminação de desinformação e notícias falsas? O que se verifica na investigação é que, muitas vezes, as pessoas partilham conteúdos falsos, não com uma intenção deliberada de enganar, mas por desatenção. Ou seja, as pessoas respondem de forma reativa ao que vêm no seu feed. Por vezes, não chegam a ler o conteúdo antes de o partilhar e não procuram verificar a sua credibilidade. Portanto, algo que se pode fazer é levar as pessoas a parar um pouco para pensar antes de partilhar informação. Num estudo recente, verificou-se que simplesmente perguntar às pessoas se a informação é fidedigna diminui a intenção de partilha de notícias falsas (mas não de notícias verdadeiras). Sabe-se também que pessoas mais reflexivas e analíticas conseguem diferenciar melhor notícias falsas de notícias verdadeiras, mesmo que essas notícias sejam contrárias à sua ideologia política.

A partir do momento em que temos uma compreensão acerca dos mecanismos que facilitam a disseminação de informação falsa (e começamos a ter alguma compreensão), podemos procurar eliminá-los. Levar as pessoas a refletir, eliminar ou dar menor saliência ao número de seguidorxs e aos likes, criar algoritmos que apresentam informação mais diversificada, criar intervenções de literacia digital, etc. No entanto, a verdadeira dificuldade está na diminuição de notícias falsas e da desinformação, sem diminuir o nível de atividade das redes de uma forma geral e sem que isso represente uma forma de censura ou ameaça à liberdade de expressão. Essa é a verdadeira dificuldade.

Uma parte da solução poderia passar por conseguir identificar notícias falsas de forma automática, através de modelos de machine learning. No entanto, distinguir entre notícias falsas e verdadeiras não é uma tarefa nada fácil para estes modelos. Aliás, não deixa de ser irônico que o GPT-3 tenha uma capacidade excepcional para produzir textos que parecem verdadeiros. Será que se um dia ganhasse consciência o GPT-3 iria julgar os textos que produz como sendo verdadeiros ou falsos? (risos) É uma questão interessante…

Mas é muito importante referir que, embora a disseminação de notícias falsas seja algo que nos deve obviamente preocupar, a percentagem de notícias falsas representa uma percentagem pequena de entre toda a informação a que somos expostos. Além disso, as pessoas têm alguma capacidade de discriminação entre noticias falas e verdadeiras, sobretudo quando param para refletir. É muito importante não passarmos a ideia de que agora tudo é fake news porque isso pode ter consequências extremamente negativas. Por um lado, pode ser explorado como uma arma política de descredibilização dxs outrxs, acusando-os de produção de fake news, por tudo e por nada. Por outro lado, pode levar a uma diluição entre a verdade e a mentira na opinião pública, e as pessoas já não saberem em que é que podem acreditar. Em qualquer dos casos há erosão da confiança, o que é absolutamente pernicioso para o desenvolvimento de qualquer sociedade. Eu aconselho precaução e rigor na forma como se fala deste tópico, para que as nossas curas não acabem, sem querer, por contribuir para a doença.


Leituras Sugeridas

Greifeneder, R., Jaffe, M., Newman, E., & Schwarz, N. (2021). The psychology of fake news: Accepting, sharing, and correcting misinformation (p. 252).

Pennycook, G., & Rand, D. G. (2021). The psychology of fake news. Trends in Cognitive Sciences.

Nota

O uso de “X” para evitar o masculino universal e englobar mais pessoas foi uma edição à entrevista feita pelo Coletivo Humanário.

Carlos Costa