A Torneira da Mentira

Por Pedro Garcia-Marques

A sabedoria popular diz-nos que mais depressa se apanha um mentirosx que um coxx. Será verdade? Quando é que conseguimos detetar mentirosxs?

A investigação sobre mentiras e enganos é levada a cabo há mais de 50 anos, no entanto, a única verdade absoluta a que se conseguiu chegar é que o seu estudo é complicado. Deste modo, David Markovitz criou uma metáfora que integra diferentes teorias sobre como a mentira é criada e encontrada.

Primeiro temos de entender, porque é que alguém mente ou engana? Para esta pergunta há uma resposta simples: enganamos se achamos que é mais eficiente mentir do que dizer a verdade, já que, se a verdade não for um problema, somos maioritariamente honestxs. Para além disto, cognitivamente é mais fácil dizer a verdade, já que as respostas verdadeiras são de fácil acesso na memória e estão organizadas. Por esta mesma razão, mesmo quando alguém mente, tende a basear a mentira numa verdade, sua ou de outrx.

O segundo ponto essencial, é que estamos predispostxs a acreditar que o que outra pessoa diz é verdade. Assumimos à partida que xs outrxs estão a cooperar connosco. No entanto, esta suposição pode ser explorada e podemos ser enganadxs. São então as violações das máximas de comunicação, isto é, desvios da comunicação da verdade que nos informam que o discurso pode estar contaminado por mentiras.

Peguemos assim na metáfora criada por Markowitz para explorar a temática. Comparamos a criação de mentiras com uma torneira. A água que escorre representa o discurso. As mentiras tomam a forma de calcário: à partida não visível na água que escorre, todavia, a acumulação pode criar problemas visíveis como o entupimento do lavatório.

Quem discursa controla a torneira. Sendo que tanto x oradorx como x ouvinte conseguem ver a água que escorre, mas não conseguem tocar ou perceber a sua temperatura. A água que corre pela torneira é controlada pelx oradorx através de 4 válvulas, cada uma representa uma máxima de conversação:

Quantidade: A quantidade de informação comunicada é representada pelo volume da água (torneira aberta ou a gotas). Violar esta máxima sugere que x oradorx não age cooperativamente com x destinatárix da mensagem, podendo estar a reter informação.

Qualidade: A qualidade da informação comunicada é representada pela temperatura da água. Em pontos opostos estão a água quente (enganos) e água fria (verdades). A água que sai da torneira, como um discurso, não é só quente e fria podendo ser morna ou variar consoante se ajusta à válvula. Quando a água sai totalmente quente, é mais fácil verificar as calcificações na água e detetar que o discurso é baseado em mentiras.

Forma: A forma em que a informação é transmitida é representada pelos estilos de jatos que uma torneira possui. As torneiras podem ter diferentes estilos de jatos que são usados para diferentes tarefas. Por exemplo, limpar frutas delicadas pode exigir um jato de spray, enquanto para pratos sujos é mais adequado um jato mais forte. Na produção de discurso, um discurso mentiroso não é apresentado sempre da mesma forma, sendo que existem diferentes maneiras adequadas para explorar e manipular x outrx.

Relação: A relação entre informação fornecida e a temática do discurso é representada por mudanças na cor da água. Frases que são fora do tema ou irrelevantes são representadas por água suja. A água que sai castanha da torneira normalmente significa que existe um problema ou alguma mudança foi feita na canalização. Acontecem de repente e sem qualquer esforço ou conhecimento de quem abre a torneira. Consistente com a ideia de que as violações de relação refletem mudanças no conteúdo da fala de uma pessoa, a água que sai castanha reflete mudanças no conteúdo da água que escorre.

Qual o objetivo e função da mentira?

A torneira faz parte de um conjunto maior, um lavatório. A função deste é geralmente a mesma: limpar. No entanto, o material de cada lavatório muda consoante o propósito. Por exemplo, lavatórios utilitários são de plástico para tarefas mais complicadas, como limpar pincéis de obra. O mesmo lavatório não seria usado para limpar fruta. Assim, os lavatórios podem ter a mesma função, mas são usados para propósitos diferentes. As mentiras podem ter a mesma função (enganar o outro), mas objetivos diferentes: convencer alguém que não cometemos um crime difere de dizer a um amigo que o seu corte de cabelo está bonito. Ambos os discursos envolvem mentiras, mas cada um tem um objetivo diferente.

Através desta metáfora conseguimos detetar quando um discurso mentiroso está a ser produzido, isto é, quando as válvulas são abertas e as máximas de conversação violadas. E como é que a deteção da mentira ocorre?

X outrx diz sempre a verdade: A premissa que nos faz automaticamente acreditar nx outrx pode ser quebrada, em resultado da perceção de que existe mentira no discurso. Mentiras são representadas como calcário na água que pode acumular e deixar resíduos na água. À medida que o calcário aumenta, pode criar calcificações e criar entupimentos. X recetorx do discurso pode, então, começar a abandonar a crença que o que x outrx diz é verdade, à medida que entende que a água não está a escoar tão rápido como o normal. Se tocasse na água entenderia que a água está quente e que o discurso é enganador.

Violações de Forma: Podem ser um bom detetor de um discurso mentiroso, isto é se o repuxo que sai da torneira difere do objetivo pressuposto. Por exemplo, se a água sai numa corrente forte e achamos que se estava a lavar um fruto delicado (como frutos vermelhos), isto pode significar uma violação da forma, pois a forma não se adequa ao objetivo.

Violações de Relação: Quando a água da torneira está com a cor alterada e persistente, pedimos ajuda a xm canalizadorx para verificar a ocorrência, pois deverá ter mais informação sobre as causa e gravidade do problema. A confiança em terceiros com outras informações é um mecanismo comum para detetar mentiras.

Concluindo, ao criar uma metáfora, conceitos e teorias que são complexos, podem ser explicados de uma maneira simples e ilustrativa. As metáforas da Torneira da Mentira propõem que a criação de discursos enganadores implica violações subtis de máximas de conversação encobertas na conversa que se crê verdadeira. Não é uma só uma mentira que nos leva a pensar que o discurso é enganador. Uma mentira é uma dica para estarmos atentos à totalidade do discurso e começar a desconfiar que quem nos fala pode não estar a ser honestx connosco.


Referências

Markowitz, D. (2020). The deception faucet: A metaphor to conceptualize deception and its detection. New Ideas in Psychology. 59. 100816. 10.1016/j.newideapsych.2020.100816.

Carlos Costa