Este é o meu parceiro e este é .
Por Pedro Garcia-Marques
Quantas relações amorosas já teve? Se a resposta for um número superior a um, então já amou mais do que uma pessoa.
Antes visto como um desejo lascivo, a capacidade de amar e de se apaixonar por mais do que uma pessoa é vista com normalidade, sendo que o casamento e a relação única são conceitos ultrapassados no século XXI. O que ainda não encaixa nos padrões duma sociedade monogâmica que promove uma heterosexualidade compulsória (1) são variações na linha temporal em que alguém se apaixona por outrxs: sequencialmente é aceite, mas simultaneamente não.
Falemos assim de poliamor. Poliamor é uma orientação de relação onde é aceite o valor e normalizada a existência de mais do que uma pessoa numa relação íntima.
Ainda que quase invisível na sociedade, surge em conversa através da cultura pop em séries como Trignometry (HBO) ou She’s gotta have it (Netflix), mas não saindo da ideia de que é um fait divers. Quem se revê como poliamorosx continua a sentir dificuldades em abrir-se à família e colegas. Os novos meios de comunicação vieram iniciar a conversa e ajudar as pessoas que podiam estar isoladas quando descobriram que amavam mais do que uma pessoa, através de redes de apoio online, como sites (polyportugal.blogspot.com) ou grupos nas redes sociais facilitando o processo de integração e aceitação dx próprix.
O poliamor pode desafiar elementos-chave da construção dominante da sexualidade, a heterosexualidade compulsória, através de duas formas:
Contestando o ideal da relação monogâmica e a ideia de que os relacionamentos devem ser apenas entre duas pessoas.
Questionando o ideal heterossexual do homem ativo e da mulher passiva e as construções binárias masculino/feminino e hetero/gay que estão na raiz de heterossexualidade compulsória .
Poliamor tem assim o potencial de desafiar, não apenas a construção da natureza da heterossexualidade supostamente obrigatória, mas também a natureza construída de identidade. O poliamor tem a capacidade de ajudar as pessoas a explorar as diferentes facetas de si mesmas e talvez dar-lhes uma compreensão alternativa da sua identidade, através das diferentes maneiras em que se veem refletidxs nos olhos daquelxs com quem estão intimamente envolvidxs.
Num estudo publicado no Journal of Constructivist Psychology em 2005, a investigadora Meg Barker examinou os discursos de 30 pessoas poliamorosas para entender a forma como estas constroem uma identidade pessoal e de grupo em relação a uma sociedade monogâmica. A análise do discurso sócio-construcionista descodifica como as experiências são construídas e o que se ganha com essas construções.
As pessoas entrevistadas usaram várias narrativas para explicar a sua visão e vivência do poliamor. Meg Barker optou por focar a sua análise em dois tipos: a relação entre poliamor e monogamia e poliamor como algo intrínseco ou como escolha.
Relação entre poliamor e monogamia
Poliamor como diferente e uma ameaça à monogamia vs. poliamor como normal e semelhante à monogamia
O Poliamor ameaça a monogamia porque representa uma maneira de ter mais do que um relacionamento íntimo ao mesmo tempo, algo que muitxs monógamxs podem ou consideram fazer, mas não o fazem abertamente devido às regras culturais e sociais dominantes em torno do que é a infidelidade.
Além de questionar as regras em torno da fidelidade, o poliamor desafia as supostas categorias mutuamente exclusivas de “amigx” e “amante”, inerentes à versão dominante da heterossexualidade.
Apesar do uso comum da narrativa de poliamor como diferente da monogamia, as pessoas entrevistadas também argumentaram que o poliamor não era assim tão diferente. Citando umx dxs entrevistadxs: “Relações românticas são sempre sobre o mesmo tipo de coisas: diversão, amizade e sexo.”
Interessante notar foi a maneira como vários participantes referiam-se a si e aos seus relacionamentos como uma “família’’, concentrando o relacionamento na noção de laços familiares em vez de laços sexuais, tal como é habitual em relações monogâmicas. Estes laços familiares podem ser mais aceitáveis para aqueles fora do poliamor e, assim, estes discursos de “semelhança” podem atuar como um dispositivo de normalização.
Poliamor como algo intrínseco ou como escolha
Poliamor como algo que eu (naturalmente) sou vs. poliamor como algo que eu escolho fazer.
A noção de poliamor como “natural” aparece fortemente nos discursos. As pessoas entrevistadas referiram que foram “sempre” diferentes ou que “nunca” foram monogâmicxs. E assim, antes de descobrirem o poliamor, sentiam-se “erradxs” ou “deslocadxs”.
No entanto, xs participantes ocasionalmente propuseram que o poliamor era um comportamento que as pessoas podem escolher e/ou trabalhar, reconhecendo que com o poliamor cada pessoa chegar à verdadeira identidade, conseguindo expressar as multiplicidade dos seus diferentes “eus” através de diferentes relacionamentos.
Psicólogxs sociais construtivistas como Potter e Wetherell (1987) propuseram que construímos as nossas identidades através da interação social, geralmente na forma de linguagem. Aqui, mostramos como discursos de “diferença” e “semelhança” podem ser usados pelas pessoas para se apresentarem de formas sentidas como mais honestas comparativamente a dinâmicas monogâmicas, por um lado, mas também enquanto pessoas que são “normais” e “aceitáveis”. Se por um lado a narrativa da “identidade natural” permite rebater críticas e julgamentos sobre como nos devemos comportar em relações amorosas, por outro o discurso da “escolha livre” ajuda a que estas pessoas se apresentem como responsáveis e em controlo das suas vidas. Embora haja muito para explorar, é importante ficarmos com a ideia de que as relações poliamorosas estão também limitadas pela linguagem “convencional” que usamos em torno das relações e pelas dinâmicas e categorias que construímos.
No Coletivo Humanário, queremos demonstrar que a investigação também se faz em Português!
Se quiser pensar e saber mais sobre Poliamor, para além de uma perspectiva somente psicológica, recomendamos o trabalho de Daniel Cardoso, que pode ser encontrado em http://www.danielscardoso.net/.
Rodapé:
(1) Falamos da heterosexualidade enquando sistema é compulsório e institucionalizado, promotor de desigualdades de género (Rich, 1980) Assim,surge a heteronormatividade, como um sistema de práticas legais, institucionais, e culturais, que propaga ideias binárias acerca do género, crenças de que este reflecte sempre sexo biológico e de que a única atracção sexual aceitável e “natural” só existe face a dois géneros opostos (Kitzinger, 2005).
Referências:
Kitzinger, C. (2005). Heteronormativity in action: Reproducing the heterosexual nuclear family in after‐hours medical calls. Social Problems. 52 (4): 477‐98.
Anapol, D. M. (2010). Polyamory in the 21st century: Love and intimacy with multiple partners. Lanham, MD: Rowman & Littlefield Pub.
Barker, M. (2005). This is my partner, and this is my… partner’s partner: Constructing a polyamorous identity in a monogamous world. Journal of Constructivist Psychology, 18. 75–88. https://doi.org/10.1080/10720530590523107.
Potter, J., & Wetherell, M. (1987). Discourse and social psychology. London: Sage.