Narrativas assexuais: romance, experiência vivida e identidades
Por Carlos Costa
O desejo sexual é frequentemente assumido como sendo uma experiência universal, natural e comum a todos os seres humanos, mas será correto pensar nesses termos?
Cada vez mais, percebemos que quer as experiências vividas por pessoas assexuais, quer a investigação à volta destes temas têm vindo a questionar estes pressupostos essencialistas (1). Desde os anos 2000, temos testemunhado tanto um maior interesse no estudo académico destes temas (2) como uma maior expressão do movimento assexual, que tem lutado pela legitimação da assexualidade, por estabelecer uma comunidade, e por uma educação que refute mitos que categorizam a assexualidade como uma patologia (3).
Historicamente, as pessoas assexuais foram não só vistas de forma negativa, como medicalizadas e patologizadas, vistas como imaturas de um ponto de vista do desenvolvimento sexual, e até vistas como tendo sofrido algum tipo de trauma no passado que pudesse explicar a falta de interesse sexual (4, 5).
De forma geral, a investigação sobre assexualidade enquanto experiência e identidade é bastante escassa mas, num artigo de 2018 publicado na revista científica Sexuality and Culture, as autoras Heather Mitchell e Gwen Hunnicutt propuseram-se a compreender melhor as formas através das quais pessoas assexuais negociam as suas identidades não normativas e como desafiam os guiões socialmente aceites sobre o que é tido como “normalidade”.
As autoras notam que as definições de assexualidade não estão sempre em sintonia — algumas focam-se mais em comportamento ou falta de desejo, outras em auto-determinação e identificação. Contudo Mitchell e Hunnicut optaram por adoptar a definição que a AVEN (Asexual Visibility and Education Network) utiliza: uma pessoa “assexual é alguém que não experiencia atração sexual. Diferente de situações de celibato, nas quais as pessoas escolhem não praticar sexualidade, a assexualidade é uma parte intrínseca do que alguém é. Existe diversidade considerável na comunidade assexual, e cada pessoa experiencia relações, atração e excitação de formas distintas”
Participação em actividades sexuais
Pessoas assexuais não são necessariamente inativas em termos sexuais. Embora muitxs assexuais não tenham interesse, sintam desconforto ou desagrado com a ideia de ter algum tipo de relação sexual, muitxs também experienciam relações sexuais, habitualmente por curiosidade, para agradar xs parceirxs ou mesmo através de atos solitários como a masturbação, que parecem estar mais ligados a razões não-sexuais, como alívio de tensão ou relaxamento, e menos a necessidades românticas ou amorosas. (6 ,5)
Assexuais e Romance
Pessoas assexuais sentem frequentemente atração por outra ou outras pessoas, contudo, a atração romântica não está relacionada com qualquer tipo de atração sexual (6). As investigadoras Heather Mitchell e Gwen Hunnicutt, referem como a investigação sobre assexualiade começa a destacar cada vez mais a possibilidade de que amor e sexo são coisas diferentes e, frequentemente, não relacionadas.
Estudos anteriores (6), nos quais participantes assexuais definiram a relação ideal, sugerem que a maioria tende a preferir relações românticas que são idênticas às sexuais, apenas sem a componente sexual. Os seus desejos prendem-se mais com companhia e conexão emocional ou intelectual (5). Para muitas destas pessoas, o assumir a sua identidade de assexual significa perder uma relação romântica, ou encontrar formas de compromisso e de abordar a sexualidade na continuação dessa relação.
Investigação em formação de identidade assexual
Apesar da escassez de trabalhos dedicados exclusivamente à formação da identidade assexual, um estudo de 2015 (5) indica que pessoas assexuais referem experienciar a dada altura nas suas vidas a sensação de que são diferentes ou de que algo está errado com elas. A exclusão, efetiva ou percebida, por parte dos pares, e os sentimentos de diferença foram para estas pessoas os catalisadores para que iniciassem processos de auto-questionamento e descoberta, tentando explorar diferentes identidades sexuais até encontrarem uma que lhes fizesse sentido. Contudo foi só quando descobriram a existência da assexualidade e de outras pessoas assexuais que a opção dessa identidade se tornou possível, e entraram num processo de compreensão dos seus sentimentos e experiências passadas, até eventualmente aceitarem essa identidade (5).
Romance e amor, um estudo prático
Para colmatar lacunas dentro destas áreas de investigação, especialmente no que toca às experiências vividas, as autoras Heather Mitchell e Gwen Hunnicutt entrevistaram pessoas assexuais para examinar variações na assexualidade, no uso e aceitação de definições sexuais, e nas variadas experiências que constituem estas identidades.
Em termos de orientação sexual, 1 participante identificou-se enquanto heteroromânticx, 1 participante como homoromântica (lésbica), 1 enquanto panromânticx, 2 participantes biromânticxs, 1 poliamorosx e 4 que se identificam como arromânticxs.
A nenhuma das pessoas participantes foram perguntadas questões demográficas gerais, estas foram emergindo ao longo da entrevista narrativa de história de vida.
Todxs xs participantes escolheram um nome fictício para efeitos do estudo.
Um dos tópicos investigados foi a ideia de romance e amor. No decorrer das entrevistas, muitxs participantes falaram sobre diversos tipos de atrações, maioritariamente sobre atração romântica e das diferenças entre essa e atração sexual. Por exemplo, Alex, participante que se identificou como panromântico assexual, percebeu a sua assexualidade enquanto estava numa relação. Afirmou que “quanto mais pensava sobre romance, pensava por exemplo nas qualidades pelas quais eu queria uma relação em primeiro lugar, e em nenhuma altura nenhum atributo físico foi relevante, era puramente uma base romântica”.
Antes de aprender sobre assexualidade, Melita questionava o seu futuro e a possibilidade de uma relação sem sexo. Melita, reportou querer uma “relação romântica com todos os aspetos de uma relação romântica, excepto a necessidade ou o requisito de ter sexo”. Depois de aprender sobre assexualidade, Melita percebeu que existiam outrxs assexuais no mundo, e que assim poderia encontrar alguém que desejasse o mesmo tipo de relação.
Outrx participante, Bluetrench, revelou não ter conhecimento prévio de diferentes atrações que possam existir fora da atração sexual. Outras formas de estarmos atraídxs nunca são mostradas em livros ou filmes, se “x personagem principal está atraídx por alguém, estará sexualmente e romanticamente atraídx… nunca vemos um isolado do outro”.
Outra participante, Cynthia, menciona que a coisa que torna a ideia de uma relação estritamente romântica mais difícil para muitxs pessoas não assexuais, é “não verem uma grande diferença entre amizade e romance” quando a variável do sexo é removida. Um dos parceiros assexuais de Cynthia, não sabe ao certo se ela sente atração romântica ou apenas desejo por uma amizade muito forte. Haydn, que também participou no estudo, especula que deverá existir uma diferença entre relações românticas e amizades, embora não consiga articular bem qual será. Se dependesse de Haydn, ela “gostaria de existir fora de todas as associações que existem com atração sexual e romântica”.
Um dos argumentos que Catherine sentiu ser importante compreender é o de que algumas pessoas não experienciam atração romântica ou sexual, são arromânticas e não sentem necessidade de desenvolver relações dessa natureza. A atração estética também está ligada à atração sexual. Haydn afirma conseguir olhar para outra pessoa e saber que é atrativa sem querer ver essa pessoa nua. Alex mencionou que as pessoas podem ser apreciadas de um ponto de vista puramente estético, sem termos que pôr expectativas sexuais nessa atração.
Os testemunhos dados pelos participantes neste estudo desafiam as formas normativas sob as quais pensamos sexualidade, atração e romance, e tornam mais complexo o uso de rótulos e identidades. Muitxs dxs participantes descreveram um processo de “coming out” bastante semelhante ao de pessoas não-heterossexuais. Todas as pessoas que participaram neste estudo, experienciaram relações, comunidade, conexão e romance, de formas únicas. Em termos de orientações sexuais e amorosas, xs participantes eram um grupo diverso e fluído, o que parece indicar que o processo de formação identitária deve ser visto como um continuum multidimensional que muda ao longo da nossa vida sem uma única meta definida (7).
A identidade sexual é, como a maioria das outras, socialmente construída e varia de acordo com os tempos e as culturas. Apesar de ser um tópico que tem vindo a ganhar maior interesse com o tempo, as autoras deste estudo lamentam que o conhecimento atual da assexualidade esteja a ser criado quase exclusivamente por correntes científicas e académicas que tentam “vincular indiscriminadamente a (as)sexualidade ao corpo biológico, enquanto reproduzem e naturalizam diferenças sexuais através de guiões de normalidade e anormalidade (8). Assim, estabelecemos e executamos as nossas identidades baseadas nos guiões que foram construídos social e culturalmente, e muitas vezes acabamos por moderar os nossos desejos, ações e comportamentos para encaixar nesses mesmos guiões.
As narrativas de pessoas assexuais expõem alguns destes mecanismos disciplinares e oferecem a possibilidade de desenvolver “literacia sexual crítica”. Estes resultados poderão também servir para intervir em discursos dominantes, e para perturbar pressupostos e narrativas que tomamos como garantidas, por exemplo, que o desejo sexual é normal mas a sua inexistência não o é. As pessoas que participaram neste estudo descrevem formas de identidade mais fluídas e com mais nuances, as suas histórias abraçam aparentes contradições tais como ser não-sexual mas românticx, e os resultados reportados podem ajudar a transformar as narrativas sobre identidade sexual numa história em vez de um simples facto “natural” da vida.
Referências
Mitchell, H., & Hunnicutt, G. (2018). Challenging accepted scripts of sexual “normality”: Asexual narratives of non-normative identity and experience. Sexuality & Culture, 23(2), 507–524.
Scherrer, K. S. (2008). Coming to an asexual identity: Negotiating identity. Negotiating Desire. Sexualities, 11(5), 621–641.
Bogaert, A. F. (2013). The demography of asexuality. In A. K. Baumle (Ed.), International handbook on the demography of sexuality. International handbooks of population (Vol. 5). Dordrecht: Springer.
Cerankowski, K. J., & Milks, M. (Eds.). (2014). Asexualities: Feminist and queer perspectives. Routledge research in gender and society (Vol. 40). New York: Routledge, Taylor & Francis Group.
Cerankowski, K. J., & Milks, M. (2010). New orientations: Asexuality and its implications for theory and practice. Feminist Studies, 36(3), 650–664.
Brotto, L. A., Yule, M. A., & Gorzalka, B. B. (2015). Asexuality: An extreme variant of sexual desire disorder? The Journal of Sexual Medicine, 12(3), 646–660.
Van Houdenhove, E., Gijs, L., T’Sjoen, G., & Enzlin, P. (2015). Stories about asexuality: A qualitative study on asexual women. Journal of Sex and Marital Therapy, 41(3), 262–281.
Horowitz, J. L., & Newcomb, M. D. (2002). A multidimensional approach to homosexual identity. Journal of Homosexuality, 42(2), 1–19.
Przybylo, E. (2013). Producing facts: Empirical asexuality and the scientifc study of sex. Feminism & Psychology, 23(2), 224–242.